Por Paulo Cannabrava Filho
Eu trabalhava no matutino peruano Expresso, jornal expropriado da oligarquia financeira e dirigido pela cooperativa dos trabalhadores, e estava como um agregado informal da delegação peruana, encabeçada pelo primeiro-ministro, general Edgar Mercado Jarin, e pelo ministro de Relações Exteriores, general Miguel Angel de la Flor.
Pela primeira vez, numa reunião de cúpula das Nações Unidas, participavam os dirigentes dos movimentos de libertação dos países em luta pela independência das metrópoles coloniais.
Foram muitas as primeiras vezes.
Os países produtores de petróleo, liderados pela Arábia Saudita, estatizaram os poços e puseram seus preços. Foi um transtorno na economia em quase todo o mundo, principalmente nos países dependentes do petróleo importado, como o Brasil, por exemplo.
Em pleno transcorrer da conferência, ocorreu o 11 de setembro no Chile, o golpe contra o governo de Unidade Popular de Salvador Allende (1970-1973) e a instauração de uma ditadura militar sanguinária que durou quase duas décadas, de 1973 a 1990.
Em Argel, encontrei-me com Neiva Moreira (1917-2012), estava como enviado por um jornal de Montevidéu. Foi muito bom, passamos a nos apoiar mutuamente. Logo tratamos de nos enturmar com os delegados dos movimentos de libertação Paigc (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde), Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) e Mpla (Movimento Popular de Libertação de Angola), além dos palestinos da Organização para Libertação da Palestina (OLP). Falávamos quase que o mesmo idioma.
A gente estava vendo um mundo que não era retratado pela mídia hegemônica, dominada por oligarquias familiares e retratando o mundo visto pelas agências de notícias de países coloniais e imperialistas, a Reuters, do Reino Unidos, France-Presse (AFP), da França, AP e UPI, dos Estados Unidos, principalmente essas duas últimas.
Havia uma revista na França, Afrique-Asie, mas não satisfazia porque era muito intelectualizada. A gente entendia que era necessário um meio que olhasse o mundo com olhos de jornalista, jornalista comprometido com as lutas de libertação, jornalistas anti-imperialistas, e que circulasse no Terceiro Mundo.
Cuadernos del Tercer Mundo
Como mostrar esse mundo em transformação? Buscando respostas, surgiu a ideia de que era necessário um meio de comunicação dedicado a isso. Neiva Moreira, imbuído de entusiasmo, conseguiria materializar a ideia com o projeto de Cuadernos del Tercer Mundo, com Júlia Constanza, Pablo Piacentini, Beatriz Bissio.
Desde que surgiu em Buenos Aires, notadamente a partir do México, onde no auge a Cadernos tinha três edições, em inglês, espanhol e português, eu me sentia umbilicalmente ligado à revista. Onde eu estava era como representante e colaborava com textos na medida do possível, pois trabalhando em imprensa diária não tinha muito tempo disponível.
Entre os trabalhos que fiz vale destacar Panamá, o Vietnã de Carter, uma reportagem quase completa sobre a luta de libertação do povo panamenho para recuperar a soberania sobre seu território, luta vitoriosa liderada pelo general Omar Torrijos Herrera.
No Brasil, a partir de 1980, numa primeira fase nos dedicamos a promover a revista nos meios universitários e a vender assinaturas. Vendemos muitas assinaturas, e fizemos vários eventos -palestras, seminários- nos campi universitários.
Numa outra etapa, eu tive que me dedicar em tempo integral a tocar uma empresa de assessoria e produção de produtos de comunicação, não sobrando tempo para dedicar-me à revista. Não obstante, o cordão umbilical jamais foi cortado.
Decretar o fim da revista foi traumático para todos os direta ou indiretamente envolvidos no projeto. Foram realizadas várias reuniões, na casa de Beatriz ou no escritório do Beco de Bragança, para dialogar sobre o que fazer para preencher o vazio deixado pela Cadernos.
Refazer a revista nos parecia a todos impossível pelos custos de produção e distribuição. Surgiu então a ideia de se criar um espaço cultural dedicado a discutir o mundo com os olhos do terceiro mundo e, na medida do possível, recriar a revista em formato digital.
A primeira constatação foi a de que o Terceiro Mundo como conceito já estava superado, que o que se impunha agora como conceito era o de um Sul insurgente contra um Norte que sobrevivia da exploração desse Sul em todos os aspectos, dominando econômica e culturalmente e a exigir libertação.
De Espaço Cultural à Diálogos do Sul Global
Cristalizou-se a ideia do Espaço Cultural Diálogos do Sul, que chegou a ser formalizado com a aprovação de Estatutos e diretoria, mas que nunca chegou a sair do papel. As circunstâncias inviabilizaram o projeto de uma ONG, mas deixou a semente de se criar uma revista virtual e assim, já com uma inteira década de existência, surgiu a revista virtual multimídia Diálogos do Sul, hoje Diálogos do Sul Global.
A evolução do nome Diálogos do Sul para Diálogos do Sul Global correspondeu à evolução do conceito de Sul, que não é um Sul geográfico, mas geopolítico e portanto Global.
O Norte geopolítico é conformado por Reino Unido, Japão, Austrália e Coreia do Sul, e liderado pelos Estados Unidos, em que vigora o neoliberalismo e se sustenta da exploração dos recursos naturais e da mais-valia dos países do Sul Global. O Norte são os países da Otan, hoje uma Otan Global com seus satélites e bases militares, aqueles países que irradiam o neoliberalismo e neocolonialismo e as guerras de conquista.
O Sul Global são os países insurgentes contra a dominação e exploração desse Norte. Esse é o conceito sob o qual se organizaram os Brics, sob a liderança da Rússia e da China, que juntas configuram o maior poder bélico e econômico do mundo.
Entre duas épocas
Naquela época, década de 1970, dois terços da humanidade estavam a contestar o sistema de dominação dos países colonialistas e imperialistas hegemonizado pelos Estados Unidos, mais apropriadamente se poderia dizer anglo-saxão, pois a Inglaterra esteve sempre na liderança desse jogo.
Isso de um lado. De outro lado, os países em desenvolvimento, o Terceiro Mundo organizado no Movimento dos Países Não Alinhados; os países socialistas, liderados pela URSS, solidários apoiando os países que se insurgiam contra a dominação.
Os movimentos de libertação nacional na Ásia, na África e no Oriente Médio, na América Latina. Na Nossa América, havia guerrilhas por toda parte: Guatemala, Nicarágua, El Salvador, Venezuela, Peru, Bolívia, Argentina, Uruguai, Brasil, inspirados pela vitoriosa Revolução Cubana.
Hoje, de novo podemos dizer que dois terços da humanidade estão a contestar o sistema de dominação configurado no Norte Global e confrontado pelo Sul Global. De um lado, países neocolonialistas e imperialistas, hegemonizados pelo imperialismo dos Estados Unidos. De outro lado, os países em desenvolvimento que se insurgem contra a dominação e cuja expressão organizada está nos Brics.
Hoje não temos mais os países socialistas, mas temos a China e a Rússia, juntas em uma aliança estratégica sem limites, liderando a construção de um mundo multipolar, solidário e com projetos de desenvolvimento e cooperação entre os Estados para enfrentar os desafios. O maior dos desafios? O combate à fome, à desigualdade, ao subdesenvolvimento. A luta que deve unir a todos é pela libertação nacional.
O povo merece a verdade
Outro desafio é como fazer chegar a verdade ao povo. Essa verdade de um mundo em transformação não aparece na mídia hegemônica. O controle dos meios de comunicação segue em mãos de oligarquias, porém, sob o controle do capital financeiro que impôs o pensamento único e o projeto de gestão da economia pela cartilha do Consenso de Washington. Livrar-se do pensamento único, voltar a olhar crítica e criativamente a realidade, eis a questão crucial do momento atual.
Dizem muitos observadores da cena mundial que estamos ao borde de uma terceira guerra e que será nuclear, pondo em risco de extermínio a própria humanidade. É simplesmente apavorante.
De fato corremos também o risco de os Estados Unidos virem a ser governados por um louco, com consequências imprevisíveis. Sobre isso, ganhe quem ganhe a eleição nos Estados Unidos, nada mudará, serão os loucos do complexo militar-industrial e do sistema financeiro que continuarão mandando. E o mundo continuará em guerra.
Guerra econômica com o imperialismo a decretar bloqueios, sanções a países que contrariam seus interesses, como Coreia do Norte, Líbano, Irã, Síria, Rússia e China, Venezuela, Nicarágua e Cuba. Guerra hibrida, lawfare, guerra cibernética, todas as guerras para perpetuar a dominação imperial, manter submissos os governos.
Ao obrigar a Europa a bloquear e sancionar a Federação Russa, agravou a crise sistêmica advinda do neoliberalismo. Desindustrialização, desnacionalização, desregulamentação, desemprego, agravado pela falta de energia e alimentação baratas originárias da Rússia.
Se olharmos o que aconteceu no mundo após Ialta e Potsdam, a gente se dá conta de que a 2ª Guerra não acabou. Aproveitando-se da debilidade em que a Europa se encontrava, os Estados Unidos iniciaram uma guerra cultural e econômica, além de militar, para dominar o continente.
A OTAN entra em cena
A Otan, criada em 1949 por quatro ou cinco países, nas últimas décadas tem se expandido em direção ao Leste e conta hoje com 32 membros. O Pacto de Varsóvia, dos países na órbita da União Soviética, desfeito depois da queda do muro de Berlim em 1989, não representa nenhuma ameaça. Ao contrário, alguns países do pacto aderiram à Otan.
Estados Unidos mantêm cerca de 800 bases militares e mais de 30 mil tropas em 80 países, mais de 100 bases nos países da Europa. É ou não é uma ocupação militar?
Na Europa e Oriente Próximo, mantêm bases militares em Bélgica, Bulgária, Reino Unido, Hungria, Alemanha, Grécia, Geórgia, Eslováquia, Estônia, Israel, Jordânia, Iraque, Arábia Saudita, Irlanda, Islândia, Itália, Espanha, Chipre, Kosovo, Kuwait, Luxemburgo, Letônia, Países Baixos, Polônia, Portugal, Romênia, Síria, Tunísia, Turquia. Em 2022, os Estados Unidos gastaram US$ 877 bilhões mais do que a China, a Rússia, a Índia, a Arábia Saudita, o Reino Unido, a Alemanha, a França, a Coreia do Sul, o Japão e a Ucrânia gastaram juntos. Isso, oficialmente, fora os orçamentos secretos.
A expansão da Otan rumo ao Leste, com explícita intenção de cercar a Rússia, ultrapassou a linha vermelha advertida pelos dirigentes russos, obrigando-a a se defender ocupando militarmente o leste da Ucrânia. Tomou essa atitude depois que os Estados Unidos colocaram um governo títere em Kiev, com o propósito de integrar o país à Otan.
Guerras de expansão
Todas as guerras havidas depois de 1945 foram guerras de expansão da hegemonia estadunidense, como as guerras da Coreia, do Vietnã, do Iraque, do Afeganistão, ou as guerras promovidas pela teocracia sionista de Israel, financiado e armado pelos Estados Unidos.
Só haverá Paz no mundo quando os Estados Unidos depuserem as armas. A hegemonia e o expansionismo estão sendo contestados, mas ainda tem o Império muita força e dinheiro a perder de vista para manter o mundo sob tensão.
Perde o povo estadunidense, perde também os povos da Europa, a oportunidade de viver em paz e se desenvolver, voltar a ser uma sociedade de bem-estar social.
Brics e multilateralismo
É o exemplo que nos dá o Brics, exigência de um multilateralismo e o espírito de cooperação entre os estados para enfrentar os desafios do desenvolvimento.
É o exemplo que nos dá a China, declarada explicitamente como inimigo estratégico pelos Estados Unidos e que responde afirmando que a China é construtora da paz mundial que investe no desenvolvimento, conforme afirmou o porta-voz do Ministério da Defesa, Zhang Xiaogang, acrescentando que todos sabem que os Estados Unidos são a maior ameaça à paz mundial e uma fonte de guerra e conflito.
A Nova Rota da Seda, integrando uma centena de países, é atividade que faculta o desenvolvimento de infraestrutura em cada país e estimula o comércio com a China e com o mundo.
Vladimir Putin, líder inconteste do povo russo, disse que o crescimento econômico global não vai se concentrar na Europa ou na América do Norte, mas nos países do Brics. Disse em intervenção no Fórum Internacional da Semana Russa de Energia, em Moscou, que os países que querem aderir ao Brics veem a perspectiva de uma nova ordem mundial, equitativa, com respeito aos interesses nacionais dos Estados, pondo fim a hegemonias e intervencionismos.
A Europa está numa crise insolúvel dentro do sistema e conjuntura de território dominado e colonizado pelos Estados Unidos.
“Dentro da estrutura de cooperação com os países do Brics, estamos trabalhando para a criação de um novo e próprio circuito de pagamentos e câmbios que vai criar condições para o processamento eficiente e independente de todo o comércio exterior”, asseverou Putin no Fórum que transcorreu do dia 26 a 28 de setembro.
Em outras palavras, o Brics desponta como um novo Bretton Woods, um novo pacto global para reger as finanças e o comércio.