Por Luciano Wexell Severo
A sede da Associação de Familiares de Detidos e Desaparecidos da Guatemala (Famdegua) é modesta e tem sido historicamente vigiada pelas estruturas de repressão que, mesmo após a recente eleição do presidente Bernardo Arévalo, seguem representando uma ameaça aos seus ativistas.
A sala que o coordenador da entidade, Paulo Estrada, nos recebe é repleta de fotos em preto e branco de pessoas sequestradas para uma viagem sem retorno. Registros simbólicos de algumas das mais de 40 mil desaparecidas oficialmente, cinco mil de las crianças.
Não são apenas ossos e mais ossos de dirigentes populares, indígenas ou religiosos opositores ao regime, mas meninos, meninas, mulheres e anciãos vistos como um risco pelos que governaram o país centro-americano entre 1960 e 1996.
Com a enorme presença israelense e a chegada de Ronald Reagan ao poder nos EUA, os anos 80 deram mais do que carta-branca às práticas genocidas: as cobriram de recursos, armas e assessores.
Filho de Otto René e sobrinho de Julio Alberto Estrada, ambos “capturados e sumidos’ pelo Estado guatemalteco em 1984, Paulo sobrevive sem residência fixa por questões de segurança e para manter acesas as denúncias dos crimes de lesa-humanidade, acompanhando os processos nos tribunais internacionais.
Arqueólogo empenhado em lutar para fazer justiça às vítimas e a seus familiares, busca trazer à tona não apenas as provas dos crimes, mas seus financiadores, os que para entregar seu país às transnacionais se beneficiaram e continuam lucrando com a dor e o sangue alheios.
É neste contexto que aparece mais que em destaque, num gigantesco e reluzente outdoor, o nome do Estado terrorista de Israel.
Cobán, fábrica de munições e cemitério clandestino
Paulo Estrada nos recorda que as organizações de direitos humanos receberam a informação de que próximo à fábrica de munições de Cobán, localizada no centro de detenção e execução clandestino em Alta Vera Paz, “havia possivelmente duas pessoas enterradas”.
A partir daí, entre 2012 e 2015, feitas as exumações pela Fundação de Antropologia Forense de Guatemala (FAFG) foram encontradas 565 ossaturas em quatro fossas, explicou, pessoas que após terem sido torturadas, haviam sido enterradas ali entre 1981 e 1988. “Eram pelo menos 90 crianças e adolescentes”, disse.
“Este é o primeiro centro de extermínio localizado na Guatemala, para onde foram transportados meninos e meninas por helicóptero. Crianças que depois vão aparecer em fossas comuns”, explicou o ativista, que também representa as vítimas junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Um dos acusados por este massacre, com requintes de crueldade com hematomas na cabeça, na garganta e tiros de misericórdia, é o general reformado Manuel Benedicto Lucas García, que está sendo julgado pelo Tribunal de Alto Risco da Guatemala por crimes de lesa-humanidade.
História de horror
Antes de se tornar uma base militar, a área era habitada por cerca de uma centena de famílias na comunidade de Chicoyogüito, onde plantavam café e milho. Em julho de 1968, oito anos após o começo do Conflito Armado Interno, o Exército se apossou da aldeia, espancou e escravizou seus habitantes, queimou suas casas e destruiu suas colheitas. Com a política de terra arrasada, também prostituiu suas mulheres, convertendo o local na Zona Militar 21.
A denúncia sobre a ação do templo da carnificina -onde hoje funciona o Centro Regional de Formação de Operadores de Manutenção da Paz (Creompaz) das Nações Unidas-, é fortalecida pelo Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI).
Ali, assinala o Instituto, “com a ajuda israelense, a Guatemala construiu a fábrica de munições para fabricar balas para os rifles de assalto M-16 e Galil”. E é neste ambiente de horror em que são encontrados os cadáveres com tiro na cabeça, olhos vendados, pés e mãos amarrados.
“Formação israelense, fuzis Galil e aviões Aravá”
Conforme Estrada, “havia em nosso país várias estruturas que tiveram formação israelense, uma delas é a Unidade de Contra-Inteligência e o Arquivo Geral de Serviços de Apoio”.
Desta forma, explicou, da mesma forma que para combater a guerrilha no campo, com seus aviões lançando bombas e seus helicópteros metralhando, na capital a ditadura dispunha de assessoria técnica israelense para a repressão sem limites.
Medindo a energia consumida e o lixo produzidos, identificava o fluxo de movimento nas residências e a possível presença de combatentes. E os eliminava.
O dirigente da Famdegua disse que “a primeira vez” que ouviu falar de Israel “foi pelos fuzis Galil e, logo depois, pelos aviões Aravá”.
“Outra questão que escutamos foi que meu pai e aqueles que os militares buscavam iam ser jogados no mar, nos voos da morte. Também começou a nos chamar atenção um nome: Ben-Hur, israelense que chega a Guatemala e se faz muito amigo e muito próximo aos que criam o sistema clandestino ilegal de inteligência, sobretudo de militares que se destacaram como os mais perigosos e sombrios”, acrescentou.
No caso do “Diário Militar”, o chamado “dossiê da morte” que estampou a política de desaparições forçadas, alguns sobreviventes que saíram vivos dos centros de tortura “denunciaram o acompanhamento de agentes estrangeiros e mencionaram várias vezes a presença de agentes sul-americanos, chilenos e argentinos”.
“Mas houve um que nos chamou muito a atenção por ter dito que com ele chegou um israelense, que esteve no seu interrogatório quando o deslocavam de um centro de detenção a outro localizado numa sinagoga, com a estrela de Davi e tudo mais, em que estavam escritos os nomes das pessoas que tinham passado por ali. Este relato está na Comissão de Esclarecimento Histórico e, por seu testemunho, ele seguiu sendo perseguido no exílio”, esclareceu Paulo Estrada.
“Havia militares e documentos de inteligência israelenses, escritos em hebraico”
“Não se surpreendam que foi encontrado um arquivo paralelo de inteligência em que havia documentos israelenses. Ele era um catedrático da Escola de Inteligência Guatemalteca, em que aparecem documentos e manuais israelenses, em hebraico. Mas o mais surpreendente é que apareciam escrituras de empresas de segurança privadas nas que Ben-Hur era um dos sócios ativos. Estamos falando de uma estrutura de quase 120 empresas nas quais Ben-Hur era um dos quatro acionistas principais”, ressaltou.
Questionado sobre o lançamento de prisioneiros ao mar, o coordenador da Famdegua citou haver relatos, documentados principalmente no período da ditadura mexicana, com quem o regime guatemalteco tinha bastante proximidade. Além disso, apontou, “soam fortes os indícios porque a pessoa passou por aqui sob os auspícios de Ben-Hur”.
“Nasci em 26 de abril de 1983 e meu pai foi desaparecido em 15 de maio de 1984, vítima da política de desaparição forçada pelo sistema clandestino ilegal de inteligência guatemalteco. Começo a reconstruir a figura do meu pai porque não recordo dele, nem de seu rosto, nem de sua voz, nem de nada. Me tiraram meu pai e meu tio, mas me deram muitos irmãos nesta luta pela justiça. E seguiremos seu caminho para que atrocidades como essas nunca mais venham ocorrer”, concluiu.