miércoles 12 de marzo de 2025
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Frei Betto: Refundar civilização exige novo humanismo altruísta e anticapitalista

São Paulo (Diálogos do Sul Global): O que se entende por “humanismo“? Trata-se deumacorrente intelectual dos séculos 14 a 16, que enfatizava a dignidade do ser humano, inspirada no sucesso do livro “A dignidade do homem” (1496), de Giovanni Pico della Mirandola.

Por Frei Betto

Essacorrentesuscitoumelhorcompreensão a respeito das diferenças entre os seres humanos, o valor da existência individual, e despertou para a necessidade de se impor limites aos poderes político e religioso.

Toda a história da humanidade é marcada pela coexistência entre joio e trigo, humanismo e barbárie, razão e pulsão. A cultura e a consciência de que o outro é tambémum ser de direitos e exige cuidados são as condiçõesessenciais de subsistência que impedem que os seres humanos disputem entre si, como feras. 

Isso surge de nossa intrínseca espiritualidade, essemovimento de se voltara si mesmo para descentralizar-se no Outro, como transcendente, e nos outros, como alteridade. Daí a perenidade da Bíblia, dos Evangelhos, do Alcorão, do Tao, do Bhagavad Gita e de tantos livros sagrados aindatãoatuais e que provocam tanto interesse.

Malgrado o otimismo suscitado pelo advento da modernidade, não podemos admitir que o humanismo prevaleceu. Nos últimos 500 anos, tivemos o massacre de milhões de indígenas na América Latina e o fluxoescravocrata da África para o nosso Continente, sendo que, no Brasil, o regimeescravistadurou 350 anos!

Ao lado dos avanços da ciência, como o estudoaprofundado da gênese da espécie humana e a abertura desta Caixa de Pandora chamada mente humana pelas pesquisas de Freud, construímosartefatos bélicos, como bombas nucleares, capazes de destruir inúmeras vezes toda a vida em nosso planeta.

O neoliberalismo, centrado naacumulação privada da riqueza, disseminouumaideologiaanti-humanista que procura naturalizar as desigualdades sociais, as diferenças étnicas, enfim, a luta de classes. Isso, além de pobreza e miséria, geraumapatologia social, a depressão que resulta do desenraizamentocomunitário, da perda de sensocoletivo.

Todas as críticas que o papa Francisco faz ao capitalismo nãoderivam, propriamente, de uma perspectiva ideológica, e sim de suavisão predominantemente eco-humanista. O projetocivilizatório iniciado na Europa nos séculos 15 e 16 jáultrapassou os limites toleráveis. As duasfilhasdiletas da modernidade, a ciência e a tecnologia, deixaram de centrar seus objetivos no bem-estar do ser humano para almejar mais e mais lucros, mais e maisdomínio de uns sobre os outros.

O mito da imaculadaconcepção da neutralidade científica ruiuquando os EUA jogaram, em 1945, duas bombas atômicas sobre as populações inocentes de Hiroshima e Nagasaki. A ciência e a tecnologia se puseram a serviço da morte. Isso agravado pela devastação da natureza.

A falência do atual modelo civilizatório, hegemonizado pelo capitalismo, temsuamaiorevidência em dois fatores: a destruição dos ecossistemas e a exclusão de mais de 1 bilhão de seres humanos de condições dignas de vida, condenados à pobreza e à miséria.

Nesse sentido, buscar umnovoprojetocivilizatório e se oporao capitalismo é umaquestão ética. A progressivadesumanização do ser humano se dá por umavisãoreducionista que reforça o individualismo alheio à transcendência e indiferente à preservação ambiental, segundo parâmetros dos pilares da racionalidade moderna. Daí a importância de umnovo humanismo dotado de espiritualidadepós-religiosa, laica, profundamente centrada naalteridadediante do próximo e da natureza.

Doisbonsexemplosdessa nova visão humanista são o bem-viver dos indígenas andinos e a ecologia integral.

O Renascimento – com Erasmo e os iluministas Diderot, Voltaire e Rousseau; a irreverência do Marques de Sade e a psicologia de Freud – exaltou a liberdade de homens e mulheres se rebelarem contra dogmas e opressões; colocar em discussão toda certeza, mandamentoou valor; e proclamarem a liberdade de emancipar espíritos e corpos. Mas será que os princípios éticos que regiam a convivência social quandoainda o “nós” nãodera lugar ao “eu” foram preservados ou subvertidos?

Penso que, no bojo da emancipação humana, liberta de deuses, papas e reis, a afirmação do indivíduoresultou no mais exacerbado individualismo. O desejosuplantou a razão e, hoje, a humanidade corre o risco de ficar refém de outro poder que se apresenta de uma forma mais sutil e corrosiva de nossos valores: a automação. As novas tecnologiasdigitaissão as coleirasvirtuais que nos sequestram do coletivo e nos mantêm confinados em nichos nos quais a diversidade é encarada comódio e a unanimidade dos parceiros celebrada como pós-verdade.

Há que resgatar o humanismo de Francisco de Assis, que buscavanão “tanto ser compreendido, mas compreender”, “não tanto ser amado, mas amar”.

Dante Alighieri, em sua “Divina Comédia”, fundouumateologiaao demonstrar que o humanismo existe enquanto transcendemos a linguagematravés da invenção de novas linguagens: como ele mesmofezaoescrever em umnovo estilo a língua italiana corrente e inventar neologismos. “Ultrapassar o humano no humano”, diz Dante, será o caminho da verdade. Amarrar – no sentido de “unir” – o divino com o humano. Algo semelhanteao que fez o nosso Guimarães Rosa em “Grande sertão, veredas”.

Depois do Holocausto e do Gulag, e dos 350 anos de escravidão e o massacre de 70 milhões de indígenas (Bartolomeu de las Casas), o humanismo tem o dever de lembrar os homens e as mulheres que padeceram como meras vítimas.

Reproduzoaqui o texto que escrevi em homenagem a Walter Benjamin em “A arte de semearestrelas” (Rocco). Ele nos alertou sobre a importância de jamaisesquecer as vítimas:“Teuanjo insiste em olhar para trás. E vê o que não vemos, a não ser pelos olhos dele: o vasto campo dos corposanônimos, dos carpinteiros dos navios de Alexandre Magno, dos ceramistas das catedraismedievais, dos servos de todos os reinos, majestades e potestades. É ali que a históriaencontraseuberço, seu texto, seupreço. É naquelescorposesquecidos, oprimidos, esquartejados, vencidos e varridos, que tuamemória, como o milagre descrito por Ezequiel, rejunta os fragmentos e refaz o corpo, o corpo da história, o corpus denso e irremovível da verdade.”

“Bem sabes que é preciso a força da embriaguez para levar a cabo umarevolução, poisteuanjo é lúcido e impotente. Impossível retornar aopassado, mas trata de resgatá-lo no presente, ainda que as vítimasprossigamsemredenção, exceto a da memória reverenciadora. Muitosdirão que são conjunturas, sacrifíciosinevitáveis, pequenosassassinatos que justificam grandes causas. Mas tu, sentinela da porta do Éden, não permitas que nos deixemosseduzir pelas maçãs rubras que nos sãoestendidas, perfumadas, por aqueles que, em nome do progresso, preferemcultuarcemitérios.”

“És tu a luz de nossarazãoneste tempo de tanta estultice e irracionalidade. Nele tua obra nos faz querubins, serafins, benjamins.”

Identificador Sitio web Ecos del Sur
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