Traoré surge como novo símbolo da resistência africana, retomando a luta inacabada de Sankara em Burkina Faso e desafiando as potências ocidentais
Essa postura o coloca na mira das grandes potências, assim como ocorreu com figuras emblemáticas como Patrice Lumumba (Congo), Amílcar Cabral (Guiné-Bissau/Cabo Verde), Kwame Nkrumah (Gana) e o próprio Sankara (Burkina Faso). Seu “pecado”? Enfrentar o colonialismo, defender a autodeterminação africana e reivindicar os ricos recursos do continente para seu povo.
Traoré assumiu o poder em 6 de outubro de 2022 por meio de um golpe de Estado -mais um na longa lista de golpes na África nos séculos 20 e 21.
A história do continente pode ser resumida em poucas linhas desde a chegada das potências coloniais: a chamada “civilização ocidental e cristã” colonizou a sangue e fogo. Alemanha, Bélgica, Espanha, França, Itália, Portugal e o Reino Unido repartiram entre si a África e enriqueceram extraindo suas riquezas naturais e por meio do tráfico de escravos.
Criaram países conforme sua conveniência, com régua e lápis, e foram impiedosos com as populações locais. Vale lembrar que algumas das piores matanças do século 20 ocorreram na África negra e foram cometidas por aqueles que ainda hoje se arrogam uma suposta “essência” civilizatória.
No início da década de 1960, grande parte da África conquistou sua independência, impulsionada por jovens líderes nacionalistas decididos a romper os laços com as antigas potências coloniais.
No entanto, a mão “invisível” da Europa esteve presente em numerosos golpes de Estado e nos assassinatos de vários desses líderes, com a cumplicidade de “companheiros de rota” que depois desfrutaram dos privilégios e benesses oferecidos pelo Ocidente -enquanto lhes foram úteis.
Em 1960 foi proclamada a independência do Alto Volta, nome imposto pela França em alusão ao rio Volta que atravessa o país. Ela não foi fruto de uma revolta (como na Argélia), mas resultado de um acordo no contexto da política de descolonização promovida pelo presidente Charles de Gaulle após a proclamação da Quinta República em 1958.
O novo país nasceu cercado por Mali, Níger, Benim, Togo e Costa do Marfim -todos eles também criados artificialmente pela França- e por Gana, criado pelos britânicos.
Como tantos outros países “independentes” da metrópole, a dependência era tamanha que, sem ela, não conseguiam sobreviver. De fato, as ex-colônias francesas continuaram usando o Franco das Colônias, uma moeda criada em 1945, atrelada ao franco francês (hoje ao euro), cuja paridade era controlada desde Paris.
Em 4 de agosto de 1983, o jovem militar de apenas 33 anos tomou o poder por meio de um golpe de Estado. Rapidamente impulsionou uma reforma agrária, a autossuficiência alimentar e campanhas de alfabetização e vacinação em massa. Por outro lado, recusou-se a pagar a dívida externa e criticou as políticas do Fundo Monetário Internacional (FMI).
Em 4 de agosto de 1984, no aniversário da revolução, utilizou expressões em línguas locais para substituir o nome Alto Volta por Burkina Faso (a terra dos homens dignos). Dois meses depois, na Assembleia Geral das Nações Unidas, proferiu um discurso de forte tom anticolonial e anti-imperialista.
Explicou ao mundo que seu país era muito rico -especialmente em ouro-, mas seu povo era pobre. Criticou a herança colonial, citou José Martí e pediu a libertação de Nelson Mandela, quando poucos o faziam fora da África e grande parte do mundo ocidental ainda o considerava um “terrorista”.
As ideias de Sankara precisavam ser freadas a qualquer custo. Em 1987, um golpe de Estado liderado por seu “companheiro” Blaise Compaoré o derrubou e, pouco depois, Sankara foi assassinado.
Rapidamente, ases políticas sociais progressistas foram desmanteladas, retomaram-se as boas relações com a França e Burkina Faso voltou à espiral da dívida com os organismos de crédito internacionais.
Compaoré governou durante 27 anos, até ser derrubado em 2014 por um levante popular. Após vários governos de transição, eleições e golpes, em setembro de 2022 o capitão Ibrahim Traoré assumiu o poder e reivindicou a figura de Sankara, após décadas de perseguições e proscrições ao histórico líder e a seus seguidores.
Traoré se apresenta como herdeiro de Sankara. Embora, por ora, seu discurso seja mais moderado, ele já acendeu o sinal de alerta na França pela aliança estratégica firmada com Níger e Mali, assim como pela expulsão das tropas francesas de seu território.
Como se não bastasse, em 9 de maio participou, em Moscou, das celebrações pelo 80º aniversário da vitória sobre o nazismo, junto a outros líderes internacionais convidados por Vladimir Putin.
A África não é um continente pobre, e sim empobrecido, costuma afirmar Traoré. “Estamos aqui para completar o que Thomas Sankara começou.” Será que deixarão?